Wednesday, May 30, 2007

estalagem 1


UMA ESTALAGEM NOS ARREDORES DO PARAÍSO



Já de nada em rigor me recordo. Defendo-me da memória inventando incidentes, biografias, causalidades. Esbanjei a vida fazendo conjecturas. Nunca houve um outrora senão aquele que soube roubar aos outros. A vida era uma ascese. Recusava-me às coisas. Limava um excesso contra os excessos. Afugentava sentimentos. Os meus amigos eram ébrios Édipos que vazavam os olhos mal os trocadilhos se lhes inclinavam sobre os destinos. Um deles despiu por engano a Graça. Esta achou que ele a queria violar. Mas a Graça era apenas um tramado equívoco. Desarmei-me como se a justiça não passasse de um mau mito. Fuji-me. Ó donzelas, ò absurda confiança, ò entusiasmo que ora amarga ora adoça a nossa inocente sentimentalidade, é a vós que deixo as portas entreabertas.

Não consegui fazer fundir as minhas expectativas com o péssimismo que afoga a espécie hominidea. A esperança estrangula muitos imprevisíveis. A alegria irreprimível acaba por chamar a atenção das censuras. Sentia-me um animal demasiado selvagem para ser feroz. Já não havia carrascos em meu redor. A civilização prefere adiar as execuções ad eternum e deixar-nos apodrecer num requintado e requentado limbo.

Despedi-me tranquilamente das alegorias catastróficas que inundam os jornais e que excitam os pequenos-almoços das funcionárias públicas. Esqueceram-se as paisagens violentas onde desembarcavam os faccionaras bíblicos: vulcões, desertos, sangue. Os deuses dão-nos a desgraça como entretenimento. A gargalhada continua a não estar na moda. A vida é uma esmola mal dada. Antes podiamos ficar inertes na lama, hoje confundimo-nos com a laca.

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